segunda-feira, agosto 29, 2011

#Serie nº 14 detector de metais #

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É fácil desfazermo-nos das coisas que nunca nos pertenceram. Difícil é fazermos as coisas que queremos que nos pertençam – metais preciosos detectados na praia de areias brancas (um cacto aqui e ali, e, contudo, não estamos ainda no deserto); carros descapotáveis com lenços de seda esvoaçantes incluídos no preço do ar condicionado; direcção assistida, na vida, no volante, na carreira, na orquestra de metais ordenados em fila por ordem de grosseria de tom – trombone, saxofone, trompete, clarinete, flautinha de bisel, e, às vezes, uma gaita de Vizela.
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Não há som mais côncavo, maior grito soltado num túnel à procura da luz, do que a acutilante trompete-ípsilon (talvez quisesse dizer convexo, mas confundo o som com a imagem do espelho à saída do túnel, curva apertada à esquerda). Seguro-a de pernas para o ar, três botões para direita, tubos de ar metalizado que unem a boca em ípsilon à pequena boquilha de gargalo fino. Se o contrabaixo é o corpo de uma mulher (de ancas largas, será preciso dizer, para não confundir com magrelas), a trompete-ípsilon é uma mulher de vestido cai-cai, Anita Ekberg. No fundo, é preciso ter o peito cheio de ar para tocar trompete, talvez por isso poucas mulheres o façam. É normal que, em lugar de ar, tenham peito e, talvez por isso, e porque a música é também um mundo de homens, não haja nenhuma mulher entre o Chet, o Dizzy, o Louis, o Arturo, o Freddie, o Boris, o Alemañy, o Clifford, o Miles, o Maynard, o Marsalis, o Mirabal – a lista podia continuar até já não haver mais dedos, apesar de haver uma tendência para o eme de metal na trompete-ípsilon.
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Encontrei velhas cassetes ouvidas a fio, dentro da caixa de sapatos, agora transformada em caixa de música sem cordões: Wynton Marsalis, Wynton na trompete, Branford no sax alto e tenor, McKoy ao piano; Freddie Hubbard e Rivera (estava riscado, Rivera não se ouvia na fita da cassete, era apenas Hubbard); Irakere; Maynard Fergusson; e, claro, Arturo Sandoval, vários – Danzón, mas também Casa Caliente, uma entrevista de 23 de Outubro de 1990, quando se foi para América,perdão, My ami, caixa já danificada de tanto escutar essas palavras (“esse país não me pertence”, “só dá valor à liberdade quem alguma vez a perdeu”), e, finalmente, Calle 54. Há qualquer coisa entre as trompetes-ípsilon e as ruas (neste caso, Calle 54, não é uma rua, é um filme), mas Dizzy toca 52nd Street Theme e Hubbard toca no álbum 52nd street de Billy Joel, e se caminharmos uns quarteirões para norte, no Apollo Theatre na 125th, ouvimos ecos da Billie no chat com a face côncava da trompete de Louis, e no Malcom X Blvd, entre a 142nd e a 143rd, coração do Harlem, o Cotton Club. No fundo, andamos todos a sonhar com o Shadows do Cassavetes.
08
(em Paris, dou-me agora conta, devia ter comprado, adiado pela “emésima” vez – outra vez os emes, trom-pete e não tron-pete, em que se confundem um tronco e um corpete –, o Manual de Saint-Germain-des-Prés do Boris Vian. A edição mais recente traz o texto com um CD, e quem tiver um leitor portátil – ipod therefore ilisten – pode caminhar pela Rive Gauche à procura dos bares de Vian, que deviam ser chamados vianenses, ou de Júlio Cortázar, perdido em Paris nos meandros da sua jazzuela)
09
Uma dúvida ontológica assalta o intérprete da trompete-ípsilon. É uma decisão de vida, esta, a de tentar perceber se uma trompete da cor do ouro de Vian(a) ou da prata argentina diferem em algo mais do que na estética. Parece (dizem) que, no som, são idênticas. Sei, por experiência, que as douradas brilham tanto como o reflexo de um vitral, mas é sol de pouca dura. Em breve, o fulgor perderá intensidade, o metal estará suado, baço, oxidado, qual verniz vermelho de unhas estalado. E não há nada mais abominável do que uma trompete-ípsilon dourada desbotada como uma mulher velha de cabelos tingidos de ouro, decadente, enganar a idade atraindo detectores de (vis) metais. As prateadas não são tão belas, mas duram, preservam o esplendor como maçãs abertas, marinadas em sumo de limão.
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Talvez esta dúvida, que antes fazia correr rios de vagas violentas contra o muro marginal, ao som do “luar libidinal” da trompete de ípsilon, já não faça sentido agora. Talvez o luar tenha perdido a libido, o ípsilon da trompete se tenha transformado em tê: o som sai convexo em vez de côncavo, retorcido pelo horror da trompete-ípsilon de dourado esfarelado nos tubos e nos dedais de anéis. Metal. Talvez a vaga já não embata violentamente contra a marginal, inundando de som o túnel ensurdecedor em frente ao morro. Talvez o som se tenha mesmo transformado em vê – ja não se ouve. Por isso é fácil desfazermo-nos do que nunca nos pertenceu, tal como é fácil deixar uma trompete-ípsilon prateada por uma dourada de verniz estalado quando já não se tem brio. Não, não quis dizer brilho, apesar de saber que muitas trompetes-ípsilion douradas o perderam. E (dizem) que no som não há muita diferença, a dourada soa ligeiramente mais grave por causa do banho de ouro, mas, no fundo, é a boquilha que importa – a Bach 3C para os agudos à Sandoval, ou a Heim #2 para os amantes de Miles – e a boca de quem a beija. A trompete não se sopra, não é flauta, empurra-se com beijos cerrados. Mas eu sei – com a certeza veloz de dedos que saltam das brancas para as pretas de um piano; com a garra nas cordas de uma guitarra; com a alma de uma voz que sussurra; com o sangue quente do estouro do tambor; com o coração vibrante da rumba, e com a dura acutilância de petardos rebentados numa noite de bastilha – que não há como uma trompete de prata para adoçar anos de luares perdidos na marginal de todos os desenganos.
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eMe. Dê.
Paris, 14 de Julho 2009
Maria David

Um comentário:

Lá vai a bomba disse...

Muito bom, a escorrer beleza, vida. Horizonte.Belíssimo.