Que palavra é essa que não nos
sai da boca e inferniza o corpo? Deve ser ela, só pode ser ela. Mas, sabes, não
vou dizê-la. Queres que a diga, bem sei…que a rasgue como toda a gente; que
faça dela copas, trunfo, amnistia de hoje para desculpar o banal, só porque é
bonito e esperam que ao menos fale dela. Eu queria, mas esta mordaça, esta
venda de seda para que não distinga. Ela intui-se, não existe fora de nós, tudo
o mais será matéria do capital.
N
ão vou dizê-la, o corpóreo não
está preparado para ela. Não é complicado, não penses que é confuso e que me
enredo em teias de retórica para me perder. É só porque é complicado, coisas
que se vão perdendo com as passadas, pé-ante-pé, embora, às vezes, voemos. É
como aquela vida que ficou para trás e da qual não nos desligamos; e já não
existe. Existir pode não ser. Ela é outra, ele também. As vidas que foram,
jamais são, mas é delas que nos lembramos. Estranha essa quase-incapacidade de
curar o que passou. Sim, alguns de nós, mas é obnóxio, essa condição de não se
poder ficar junto. Perder vidas, porque não sabemos em que momento nos
perdemos, ou nos encontramos e desviamos.
Eu talvez saiba. Foi naquele dia
não foi? Madrugada depois do cheiro a velas porque a luz falhou. O silêncio de
rua, no tempo avançado da noite, tempo de vidas estagnadas. Dei por mim a
olhar-te e a tocar-te com os olhos. Cada poro, cada textura, atlas imenso do
teu corpo deitado, como quem aprende a andar. Há corpos que parece que aprendemos
a andar de novo, ou é a vida que ganha um novo dicionário. "É toda uma geografia
incógnita ao toque, tão, hum..., como dizer?" vislumbre de um tesouro que nos
cai nas mãos inesperadamente. Senti-te como quem enterra as mãos na terra para
cheirar petricor. É a chuva, forma que o céu tem de lamber a vida que há em
nós. Gotas de beijos leves, diáfanas mordidas temporais, coisas fofas da
natureza. Quem inventou as palavras e as coisas deveria saber que há calafrios
que arrebatam cá dentro e que não se podem explicar, que não têm matéria que se
entenda; que o invisível do pensamento não se costura num manto só. Não se
costura, embora se enterrem as agulhas.
Ainda sinto o bafo quente da
noite, a nuvem que saía da boca. Eu soprava nestes dias e ficava toda aquela
névoa, fugazes segundos, porque o frio comia-a numa inveja materializada. É
como as sombras dos galhos das árvores, afagos nas paredes das coisas que os
homens são. É como a tinta estalada das portas, envelhecidas pelo ciclo dos
ventos, dos verões, da luz esmaecida das tardes de outono, dos humores das
estações, às vezes geremias, é só o vento. Quis guardar-te. Cravar na memória a
forma como te percorri, no pensamento, na noite, no dia, na tarde. E a imagem
que retive foi a tinta estalada da porta onde encostamos a cabeça porque
estávamos cansados. O beijo foi longo, não sei bem o que era aquilo, mas era
isso.
Eu sei, nunca mais nos vimos,
ouvimos, sentimos, mas sei que nos pensamos. Ou ainda nos pensamos. Ainda
existimos mas sem existir para um e outro; ainda procuramos a palavra, a
semente livre que produz as sombras que beijam as coisas dos homens. Sim,
procuramos, as palavras para dizer as coisas que não existem no mundo do corpo,
apenas cá dentro, e chegamos a querer dizer, até percebermos que tudo não passa
de um bafo quente e que o vidro apenas nos protege dos beijos que a chuva há-de
dar, em tardes de estações enraivecidas, de ondas de mar gigantes, haverá ondas
de mar gigantes? Deve ser isso o sublime, ou aquela palavra que não nos sai da
boca.
Vanessa Ribeiro Rodrigues
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