Chegou o dia em que os ‘inquilinos forçados’ do
Estabelecimento Prisional do Vale do Sousa iam finalmente poder mostrar tudo o
que valem através de um trabalho artístico multidisciplinar a apresentar a uma
série de convidados na tarde de ontem, sexta-feira, dia 30 de Outubro.
São quase 14h00 e a equipa da Pele ocupa a sala do parlatório
com os derradeiros preparativos para a apresentação final do projecto Ecoar,
cujo título é “Perdidos e Achados”. Os primeiros reclusos chegam para auxiliar
na remoção das cadeiras e libertar espaço para o público. Há instrumentos
convencionais e mais alternativos pousados no chão: tambores, bombos, baquetas,
maracas, jambés, sertãs, bidões, entre outros. Maria João Mota, a coordenadora
da Pele anda lá pelo meio para o que der e vier, no meio da azáfama. Patrícia
Poção testa a câmara de filmar e deambula como se tratasse de uma nova versão
do clássico de Dziga Vertov: “A Mulher da Câmara de Filmar”.
No ar paira um certo nervoso miudinho, muito próprio de quem
quer fazer as coisas bem-feitas e sem erros, afinal esta última palavra tem a
carga simbólica daquilo que os mantém ali e é sinónimo de uma sentença a
cumprir. A sala fica com espaço suficiente, sobeja tempo para um pequeno ensaio
musical, quase espontâneo, a cargo de Serginho, o monitor de serviço. Mas há
ainda disponibilidade para uma ‘tomada de pose’ para a fotografia, com os
instrumentos ou sem eles, mas com todos a fazerem questão de terem os amigos ao
lado. As conversas informais tomam também conta do ambiente. Para além do grupo
musical dos reclusos, a peça artística faz-se de igual forma com um grupo
performativo, incumbido da representação, das actividades circenses e
malabarismos, tudo isto apoiado por Jorge Lix e pelos ‘pedagógicos’ integrados
no seio do grupo: Abel Sousa e Mafalda Guedes.
A apresentação tem lugar no exterior, num espaço contíguo aos
edifícios que compõem o estabelecimento prisional, mas intramuros,
naturalmente. O xilofone é o primeiro instrumento a “Ecoar”, é o sinal para que mais de uma dezena de actores equipados
de negro e com um balde da mesma cor enfiando na cabeça, desçam a ladeira que
os conduz até à área de (re)apresentação. Um conjunto de canas de bambu
delimita o espaço de cena. Logo a seguir, e após terem vagueado pelo ‘palco’, o
anonimato dá lugar à descoberta de identidade, os detidos retiram os baldes da
cabeça.
Juntam-se logo em seguida em grupos de quatro para fazerem
saltar em sequência, como num jogo, pequenas bolas alaranjadas de balde em
balde. Os elementos da percussão fazem-se ouvir, agora que se assiste a um jogo
coreográfico de equilíbrio, com os elementos da representação a segurarem as
canas de bambu num dedo, enquanto outros dois revelam perícia na condução das
andas, são eles quem lidera esta espécie de procissão constituída pela amálgama
de público prisional, convidados, guardas, técnicos e administrativos. ‘A
brigada das canas’ faz guarda de honra a quem entra no edifício e se dirige ao
parlatório, para que a narrativa artística prossiga. Serginho anima esta fase
com um jogo de percussão e com um bate-mãos e bate-pés rítmico, com um assobio
quase em jeito de piropo pelo meio. A adesão é global, até os mais reticentes
terão ficado conquistados.
Antes de ‘uma pequena fuga’ até ao espaço exterior, onde o
espectáculo encerra, a música e a batida respectiva assumem o carácter de um
manifesto reivindicativo, com o mote para que o menu oferecido aos detidos
deixe de servir um redundante arroz com atum e passe a presenteá-los com uma
“Francesinha! Francesinha!”, como eles próprios reivindicam. Há sorrisos
anuentes a bordarem a cara da Directora Fernanda Barbosa e da sua adjunta Ana
Gomes, o chefe dos guardas, António Quadrado, afinou pelo mesmo diapasão e
idêntico semblante mostrou Elvira leite, a responsável técnica pela reeducação.
O grupo musical e o grupo interpretativo, que na essência são
a soma de um mesmo elenco indivisível e dinâmico do espectáculo, voltaram a
encontrar-se num frente a frente em que a animação melódica, com especial
incidência na percussão, auxiliou a marcar o ritmo de uma actividade
performativo-acrobática. O júbilo final traduziu um momento de catarse
libertadora, sempre na demanda de um perfeccionismo muito próprio de quem sente
ser olhado como elo mais fraco da sociedade, mas não enjeita uma oportunidade
para mostrar que também é gente.
João Fernando Arezes
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