# Estratégias de reconhecimento #
Já tem idade para saber com que almofada dorme melhor. Se alta, se baixa. Não
importa. A verdade é que há dias em que dorme melhor com uma almofada baixa
e mole, flexível, que se encaixe sob o pescoço como aqueles cotovelos de ar que se
usam para dormir nas viagens transatlânticas.
(reconhece o seu eurocentrismo pela referência as viagens atlânticas, por oposição às
índicas ou pacíficas. E passa à frente)
Noutras noites, prefere almofadas altas e firmes como um sofá de cabedal, para quem
dorme de lado, recomenda o Ikea.
(reconhece as suas referências capitalistas como esta à grande superfície sueca de
design a preços de saldo, para a qual talvez uma criança tenha trabalhado por um
dólar/dia, ou um euro, vale menos por causa das oscilações nos mercados e do import-
export. Reconhece o grande capital, admite fazer compras no Continente, e passa à
frente)
Surpreende-se por não saber ainda se deve comprar uma almofada alta ou baixa.
Nessa hesitação está toda a perplexidade da existência de números redondos, décadas
contadas pelos dedos de uma mão. Receia pôr o ponto final nessa mão e passar à
próxima. Só tem duas mãos: nessa hesitação está toda a perplexidade da existência
– ponto. Há 15 anos sabia tudo, não hesitava, lia Proust, mas sabe (e reconhece)
que nunca terminou o sétimo volume por pavor aos pontos finais. Deixa, portanto, a
porta entreaberta, inclusive para a entrada dessa incomensurável sensação de culpa
histórica.
(reconhece a cor da pele, branca, a cor dos seus ascendentes, brancos, europeus,
galegos, transmontanos, e reconhece que eles eventualmente viveram em África, com
pretos. Reconhece a herança colonial e passa à frente)
Chama-se auto-punição, mas aprendeu a viver nesse limbo entre a indulgência e a
clemência. Recentemente inspirou-se nas listas de Sontag, coisas como ela também
fazia mas já rasgou – e não haverá descendência que a continue porque é ela (e não
outra) a “mulher que não queria ter filhos de seu ventre”. Continua a fazer listas como
se tivesse quinze anos, e há quinze anos que a lista é quase sempre a mesma. As
artérias têm colesterol acumulado, o médico diz que nunca é tarde para andar, e falta-
lhe o ar a subir as escadas. O coração bate cada vez mais depressa, mas ela sabe que é
amor, não arteriosclerose
(reconhece a condição pós-moderna da sua existência, reconhece ter lido os
hermenêuticos, os estruturalistas e os pós-estruturalistas, reconhece não distinguir
foucault de deleuze de derrida, reconhece ter-se tentado pelo badiou e pelo negri, mas
ficou-se pelo gil. Reconhece ter bufado de tédio no espectáculo da filosofia-pop do
seminário do zizek. Como agora bufais vós de tédio por este auto-reconhecimento
punitivo da minha condição pós-traumática depois do fim da história enquanto sujeita
– não quero ser sujeito – pós-11/09. Continua a reconhecer o eurocentrismo na sua
condição, sabe que nasceu na Europa, escreveu até um livro sobre isso, mas não sabe
o que ela ainda quer dizer. Erasmus, Maastricht, Schengen ou Bologna?)
Olha para trás e reconhece tudo. Pergunta-se para quê continuar a escrever se o
tempo da revolução já passou. Foi há 10 anos que disse “o amor é o silêncio” numa
tarde outonal de árvores vermelhas na esplanada da avenida de Berna. Aí começou
a Europa em espiral descendente de horror e de esperança. Escrevia cartas de amor
com Proust à cabeceira, à sombra de jovens rapazes em flor, Albertina prisioneira,
Albertina desaparecida, à procura do tempo reencontrado. Há que procurar a
revolução verdadeira.
(reconhece que não vai ler todos os livros. Continua a fazer listas, mas reconhece
que são inúteis porque não há vida para além dos russos e dos modernistas. Admite
novamente o seu eurocentrismo e, diz, até lê autores pós-coloniais, africanos,
brasileiros, latino-americanos, encantam-na o Carpentier, o Borges, o Cortázar, o
Pepetela e a Lispector, mas toda a beleza da violência está nos russos, e toda a poesia
do niilismo está nos modernistas. Não quer ser bloomiana e dizer com Shakespeare,
tudo, sem Shakespeare, nada; abre a porta ao Camões e deixa-a entreaberta para quem
quiser entrar)
Lista de pendentes dos últimos quinze anos: 1) escrever sobre recomeços; 2) escrever
sobre o duelo de Pushkin. Um escritor que morre num duelo é bravo e literário.
Hemingway matou-se com uma pistola. Kerouac morreu bêbado. Barthes atropelado.
Woolf foi a Ofélia que Shakespeare desenhou. Pergunta-se muitas vezes como há-de
continuar a escrever se não conhece a morte. Gostava de poder jogar xadrez com ela,
mas só sabe que o cavalo se move em ele (elo, ela).
Apesar da sua arrogância já não justificada pela idade, reconhece-se no espelho.
Ainda. Talvez hoje, mais do que dantes, com saudades de tangerinas doces, na
condição insular e pós-traumática do não-lugar onde as amendoeiras não florescem e
as vacas se assentam no prado verde quando a chuva se aprochega. Saudades já não
dos jacarandás lilases – essa fugaz flor de Verão (bela como uma actriz americana)
– mas da rosa camélia (bela como uma actriz italiana), e das japoneiras de Inverno
amadas pelas velhas doroteias.
M.D., Nottingham, 11 Janeiro 2011
Maria David
terça-feira, janeiro 18, 2011
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2 comentários:
lindo! trazes-me tanta vontade de escrever.
Pepper, vais ter paciência com os teus direitos de autor (consagrado e premiado e mai não sei quê...), mas já saquei a flor para o screensaver do meu PC! Em dias cinzentos de inverno persistente, a beleza é urgente :)
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