





Entrelinhas
O Outro lado da Crise...de Identidade
É certo que todos, sem excepção, gostaríamos de possuir um espanta-espíritos que exorcizasse o espectro da Crise para longe do nosso tapete de entrada. E ela, a malfadada, nem se dispôs sequer a limpar o pés antes de entrar. Sem qualquer pedido prévio e com manifesta falta de respeito pelos proprietários - proprietários é como quem diz, na maior parte dos casos o detentor ainda é a instituição bancária que emprestou o dinheiro e, que se saiba, neste sector não existe lugar para a filantropia -, entrou porta a dentro e solicitou hospedaria. Longa, pelos vistos...
Na verdade, dou por mim há já muito tempo a pensar quais as razões subjacentes a esta jornada de infortúnio dos portugueses e a responsabilidade que a cada um de nós, nesta malha colectiva que perfaz 10 milhões de pessoas, incumbe. A Crise é maiúscula, daí ter optado por “capitalizar” a letra utilizada.
Partindo daqui para me posicionar noutro raciocínio, talvez até nem me interesse ajuizar muito quais os fundamentos económicos que nos fizeram chegar até este “estado” (em minúscula, segundo as agências de rating somos lixo) para isso há ‘tudólogos’ que ‘sobre tudo’ (alguns de sobretudo, também) opinam com a maior das propriedades. Chegam a existir mais ‘comentadeiros’ do que matéria para comentar! Na altura em que a génese deste processo nos concedia os primeiros sintomas, as vozes a pregar no deserto foram escassas, não se vislumbrou um profeta mais contemporâneo ou um operador de bola-de-cristal que tivesse advertido a míriade do comum dos mortais para o que se iria seguir. Os que o tentaram fazer foram imediatamente desacreditados, ninguém quis sair da ilusão para enfrentar a realidade enquanto esta última ainda poderia tornar-se menos dura.
Foi nesses gloriosos anos que se seguiram à adesão à União Europeia que nos passaram a vender a ideia do crédito até para a simples compra de alfinetes e nós, tão ingénuos, a pensar que havia almoços de borla. A ilusão aguça a cobiça, foi então nesses mesmos anos dourados, com o nosso Portugal embevecido e banhado de Sol, mar e milhões de euros que também nos davam à costa, que o ‘tuga’ começou a fazer uma espécie de contabilidade domiciliária imaginativa: se o vizinho tem um BMW do último modelo por que raio hei-de eu ter um Fiat Uno?! Se o meu primo tem um T3 +1 e nem sequer tem filhos, porque hei-de eu viver num T2?!
Dir-me-ão: “Sim, mas não foram todos a fazê-lo!” Certo, mas foram em número suficiente para mudar o adágio e colocá-lo no patamar do reconvertido da ‘A união faz a forca!’. E nem demos por ela que subtilmente nos emprestaram a corda. Moral da história e em suma: o ‘Tuga’ confundiu as contas com as ambições.
E surpreendentemente não se ficou por aqui, adicionou-lhe o logro da disseminada ideia de “qualidade de vida”. A partir deste ponto passou a viver num mar de confusões e a este mesmo nível comportamental há uma que com particular acuidade nos deveria ferir qual lança afiada: aquela que aponta para a ideia de indiferenciação entre o individualismo e a privacidade. A dimensão social desta confusão tem um impacto enorme, em primeiro lugar porque o indivíduo converte a sua própria condição humana num condomínio fechado, como se os outros não existissem. “O não quero que ninguém veja” passou a ter primazia, construíram-se muros em redor e o pior é que estas barreiras não foram e não são apenas físicas, mostram o peso de uma mentalidade que se construíu. Se pensarmos em tempos em que o índice de cidadania democrática pode vir a ser avaliado pelo direito à indignação, talvez valha a pena apostar em termos menos e voltarmos a ser gregários, sermos solidários em oposição a solitários, a nossa identidade colectiva depende disso...como de pão para boca.
Talvez este artigo na forma acabe por aqui, contudo, ficaria imensamente feliz caro leitor, que no que toca ao conteúdo o possa discutir com alguém, quanto mais não seja por imperativos de fidelidade e coerência às ideias nele transmitidas.
João Fernando Arezes