segunda-feira, julho 28, 2014
# Regresso à Casa das Artes #
É mais que o silêncio. Foi ausência, foi hiato, foi abismo, uma falha tectónica, onde caberia uma Jangada de Pedra, a ardência da terra. Uma fenda, uma ferida, um orifício anatómico. Pareceu um sigilo, um segredo, uma boca amordaçada, um soluço, uma memória longínqua, prometida, no nosso caderno de encargos.
E, nessa ausência...
… há fetos no ventre, filhos que vieram, homens que se foram, netos e bisnetos, borboletas e lagartas, folhas verdes-folhas-secas, musgo tenro e carnudo, tão fofo, efémeras que dançaram nos raios de sol até ser Inverno. Houve memórias que te ansiaram, desejo carnal; o toque, as mãos nas cicatrizes arbóreas. Houve tempestades, frio e abandono.
Cheira a madeira lambida, resina e acre olor. E sempre este teu aroma telúrico: preticor. Húmus, sub-bosque, flores em decomposição, desabrochadas, um milagre; regressos, retrocessos, recomeços. Da terra negra e húmida, do carmesim do ventre, houve este estranho gemido a solidão, ventania, rizomas, fragoso movimento.
As pedras tiverem tempo de aprender a falar. Os troncos instruíram-se a enrijecer e enfrentar o relento que fustiga nas mais primitivas temperaturas. O céu viu-se rompido pelas frondosas folhas, rendilhado escuro e fresco, que lhe desenha janelas - olhos desde o chão ao ar- na monotonia do azul sem nuvens. Os galhos deixaram crescer os cabelos, as sombras a eternidade para se olharem no espelho pantanoso, âmbar-água. Enquanto isso, o vento, estugado e invejoso, roçava esta quietude a olho nu; porém, um festim ruidoso no reino dos seres silenciosos que falam, na cadência do crescimento de uma raiz.
Há baús que guardam fotografias dos teus tempos felizes, burgueses, festivos, drama e comédia, amor e ódio; mas só a memória dos anciãos do jardim podem ensinar sobre a evolução desses regressos e retrocessos, do princípio e da Fénix renascida
Quantas vidas, afinal, caberão em ti? As que já foste, as que serás, e as que és?
É mais que o silêncio, é além de esquecimento; é esta inquietude que se sente quando tateamos as rugas dos teus troncos; as gelhas das tuas estevas, as carquilhas sábias que se sobressaltam no caminho do teu cale lenhoso. E se a ti regressamos, se a ti retrocedemos, depois desta ausência, é porque os homens padecem da mesma incapacidade de perceber, gerações desfiando gerações, de que aquilo que nos agarra à terra está naturalmente certo, naturalmente em harmonia.
E, no fim deste repouso, no princípio deste recomeço, da origem e finitude, só retornamos se estivermos ausentes, para sempre nos devolvemos ao ventre da terra, a infinita matéria cíclica da Humanidade que somos. E isso, é sempre tudo que acontece no silêncio!
Texto de Vanessa Rodrigues
quinta-feira, julho 24, 2014
# O Tempo Morto É Um Bom Lugar #
Shopping Cidade Do Porto, com participação de Valter Hugo Mãe.
Ensaio fotográfico para blog de Paulo Pimenta
Excerto do novo romance
No
estabelecimento prisional é que se está bem, livre de aborrecimentos e sem mais
inquietações do que aquelas que, às vezes, irrompem de um pesadelo ruim. Sonho,
entre outras coisas, que me libertam e que, mais um entre a crescente multidão
de desgraçados, erro pela cidade abrindo caixotes do lixo à procura de alguma
coisa que se coma; que durmo dentro de um caixote de cartão, abrigado da chuva
na sacada de uma loja à espera de trespasse. Também sonho, de vez em quando,
que se junta a mim um gato branco que é o exacto oposto daquela gata preta que
em tempos me esperava na porta do prédio e que se fez minha amiga. Em vez de me
acompanhar desinteressadamente, o gato branco persegue-me e morde-me a barriga
das pernas, arranha-me com as unhas para que lhe dê as porcarias comestíveis
que encontro nos contentores do lixo comum. É um bicho vil e maligno,
oportunista, e nunca faz xixi ou cocó na porta dos bancos e das repartições
públicas — caga e mija em cima de mim enquanto durmo. Acordo por isso muito
ansioso e assustado, mesmo quando estou consciente de que se trata de um
pesadelo e de que não existe nenhum gato tão branco e tão malévolo como o que
tem surgido nos meus sonhos, e muito menos aqui na prisão, onde o único
aborrecimento real é o modo que alguns detidos têm de olhar fixamente para mim,
vigiando-me como se fossem fiscais das finanças e eu me tivesse esquecido de
pedir a factura do café.
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