terça-feira, janeiro 31, 2012

segunda-feira, janeiro 30, 2012

Zona



Zona. Levantamento fotográfico em torno da Av. Rodrigues de Freitas - Porto, no âmbito do projeto de comemoração do Dia Internacional da Dança. Núcleo de Experimentação Coreográfica. Janeiro de 2012

sábado, janeiro 14, 2012

#Não Vou Por Aí #

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Cântico Negro
José Régio
#pp_nao_03
#pp_nao_01
#pp_nao_02

sexta-feira, janeiro 06, 2012

# A vida a despedir-nos #

“Até amanhã. É interessante como levamos todos os dias da vida a despedir-nos, dizendo e ouvindo dizer até amanhã, e , fatalmente, em um desses dias, o que foi último para alguém, ou já não está aquele a quem o dissemos, ou já não estamos nós que o tínhamos dito.”
José Saramago
Ensaio sobre a Lucidez
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quarta-feira, janeiro 04, 2012

# Série nº15 Memória #

Debris: é o que os ingleses chamam aos escombros, destroços, entulhos que restam depois da implosão. Eles dizem melhor numa palavra aquilo que nós explicamos em muitas: fragmentos jogados ao acaso pela força da destruição.
É uma palavra de origem francesa – o dicionário diz que foi no século XVIII que chegou ao inglês, atravessando o canal, de barco, a nado, talvez, a palavra na mão qual lusíadas náufragos, dando à costa (debris) como se fosse memória de um verso maior. Apenas a proa, ou a popa, memória de um barco, ou simplesmente o mastro (debris) de uma bandeira pronta a ser queimada em noite de revolução.
Se a terra é memória do homem, a escama é memória do peixe que não sabia se havia de fugir, ou morder o anzol. Enforcado, libertou-se, sangue na guelra finalmente escachada sobre o seixo de praia.
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Mas a praia não é só areia, ainda que cedo tenha aprendido a escolher emocionalmente entre elas. Eram todas diferentes:
a de Sines era muito muito fina e tinha linhas escuras que compunham quase-corações de Viana. Esse lado escuro da areia vinha das rochas do paredão (eu dizia padrão, por lapso, mas hoje sei que estava certa: porque as rochas do porto se encaixavam como num puzzle);
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a de São Torpes era ainda mais fina. Colava-se à pele quando vínhamos da água. O vento levantava-a e era vê-la nos olhos, nos ouvidos, no nariz, na ponta das unhas. Entranhava-se. Levava-se para casa a memória da praia e tornava-se invisível no chão de madeira clara. Por isso, dias depois, se sentiam ainda pequenos debris de praia quando subíamos as escadas.
a da lagoa era lodosa e húmida – a da lagoa mesmo, não a da costa, que tem conchinhas partidas e conchinhas grandes de que se fazem cinzeiros sinceros nos cafés de praia. As pequeninas decoravam aquele restaurante – como é que se chamava? – que um dia deitaram abaixo e que tinha conchinhas em volta das janelas, como aquela casa de Brescos aonde eu quis sempre morar.
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a das Areias Brancas era a melhor, grossa, soltava-se, deixava-nos, juntava-se entre si, ainda que fizesse, com as humidade do mar da véspera, pequenos croquetes que atirávamos uns aos outros como se fossem bolas de neve. Era uma areia independente dos homens, apesar de deixar colados na pele pequenos cristais como mosaicos de debris no corpo. Não é por fazer jus ao nome, por ser branca, mas durante muitos anos, porque o mar enrolava na areia e ninguém sabia bem o que ele dizia, coleccionava no sopé da duna quilos de piche, assim mesmo, debris de crude, memória de grandes acidentes com grandes petroleiros quando se construía o grande porto.
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A memória da minha infância confunde-se com a das minhas praias. Mas as minhas praias são muito mais do que os seixos partidos desse mar que bate na areia e desmaia: são essas pequenas rochas partidas, conchas que vêm em lascas e as que vêm ainda inteiras, negras-azuis como a casa de um mexilhão, restos de coral que vão, algas secas que vêm, caricas que ficam, paus, cordas do pescador de robalo (cuidado com o fio invisível, e com o anzol) e aquela luva azul que perdi, uma tarde, numa praia de inverno, deserta, como em Miramar (mira, mar), janelas verdes e portadas brancas, ondas ao longe embatendo nas rochas, o vento assobiando nos galhos, o Brecht a correr pelo jardim, a caixa do correio pintada de vermelho (como a tua camisola) e eu de vestido às florinhas. Queria ter passado o resto dos meus dias nessa casa de praia, com os meus óculos de velha e os meus cabelos cada vez mais brancos (o tempo passou tão depressa e nem dei por isso), os meus livros encastelados como claras, empoeirados como pipas de vinho nas adegas, espalhados pelo chão com copos de rum tombados, cortinas brancas de duas laçadas (de um lado e do outro), o candeeiro de pé alto, amarelo, o cadeirão de couro rasgado nos braços, a cama de ferro preto, um dossel de tule comido pelos mosquitos, velas a roer as pontas negras das folhas, eu ainda a
miramar
mira-amar
amar-maria
Balbucio. Perdida a memória de amar, resta essa outra, longínqua, de lenços brancos rasgados que um dia podiam ter sido bandeiras. Não há sobra, escombro, entulho, já não há nada de novo aqui, debaixo do sol. Senão este pássaro do sul (debris) ferido na-i-asa. Bate na areia e desmaia, porque se sente infeliz.
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M. D., Porto, 2 de Janeiro de 2012