segunda-feira, julho 22, 2013

# Participação Encontrarte Amares 2013 #

Estarei por lá de 25 a 28 Julho com um trabalho " E tempo a passar"

http://encontrarte.pt/encontrarte/?page_id=835

Projecto sobre a crise em Portugal



PERCURSO PELA CIDADE, CRISE, DESILUSÃO, VAZIO. Fotografias de Paulo Pimenta

“É sempre irracional? Que todos os homens precisam de sonhar, mesmo que saibam que os sonhos são apenas isso, sonhos?”

“Quantas vezes os sonhos se desfaziam entre os dedos precisamente quando pareciam ao alcance da mão?”

José Manuel Fajardo, in “Demónios à minha porta”

 
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Viajo pela cidade numa rotina diária, fazendo percursos sem destino e encontrando seres abandonados, deitados no chão, num sono profundo. Cobertos por jornais, cobertores e caixas de cartão. Lá estão eles a dormir mais uma vez durante o dia. Vou viajando pelas ruas, encontrando estas criaturas desligadas do mundo enquanto a cidade permanece sempre acordada. Carros a apitar, crianças a gritar, transeuntes a falar ao telemóvel, absorvidos pelos seus inadiáveis compromissos. Chuva, sol, vento e frio. E eles continuam a repousar sobre o mais duro dos leitos, num sono tão profundo que me leva a imaginar o que sonham. Mas será que sonham?

Viajo pela cidade e cada vez encontro mais lojas fechadas, casas abandonadas, pessoas a desesperar, a irem embora, manifestações, lutas, desilusão, desemprego, memórias de sítios que já não existem. É a actualidade do meu país, é a instabilidade, o medo, a incerteza, a tristeza dos meus amigos ou conhecidos. São pais que têm vergonha de pedir e passam fome para dar comida aos seus filhos, crianças que só têm uma refeição por dia na escola. Todos os dias aumenta o desemprego, a pobreza, fome, a austeridade, o fosso entre classes sociais.

Será que vale a pena sonhar acordado? Ou sonhar a dormir? O que vai fazer mais a troika pelo poder económico? Até onde estas pessoas poderão ir, e nós até quando aguentamos?

Os demónios vão continuar à minha porta?

O meu trabalho será apresentado em forma de instalação, com som, as imagens em slideshow, e terá aproximadamente quatro minutos de projecção.

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quarta-feira, julho 10, 2013

# Regresso da Série : Uma crosta de pujança #


[fragmento do novo romance de Maria David]

Despertou-me a madrugada com o cicio do vento na janela. Fazia a placa de metal do parapeito saltar, bater como numa manifestação de testos. Quando abri a porta da rua, o céu contemplou-me num vermelho rubro, escuro, carregado de nuvens. Furacão, pensei, cruzando os braços sobre o peito, num estremecimento calafrio e agitado, e acendi a vela.
Àquela hora já a luz estava cortada e nos próximos dias viveria de enlatados em suor.
#PP_CUBA_01 #PP_CUBA_02 #PP_CUBA_03

            Quando um furacão entra em Cuba, vive-se numa espécie de ansiedade revelada por um excesso de concentração mental. Esperamo-lo quase de braços abertos, não que queiramos que nos visite (é sempre melhor que o faça noutros apeadeiros), mas porque quando cá chega queremos mostrar ao mundo como o enfrentamos, como o sabemos enfrentar, de espada de prata afilada brilhando sob a tenebrosa intempérie. Sim, estamos preparados, sempre estivemos, de arma ao ombro, como tu no teu serviço, como nós, reservistas, esperando o iminente ataque de sua eminência, vizinha e metáfora do gigante. É a crosta de pujança prestes a saltar. Somos grandes, sabemos que o somos, mas há quem, no mundo, nos queira pequenos, calados, submissos. E não nos vergamos, não, perante o furacão, erguemo-nos diante dele, encaramo-lo de frente, gargalhando, sabendo que, daqui, não passará. 
#PP_CUBA_04 #PP_CUBA_05
Este esteve dias ao largo, víamo-lo como um grande vórtice enredado a quilómetros de distância, o seu olho curioso espreitando sobre o malecón, as ondas agitadas anunciando a sua chegada, pronto para tudo varrer e consumir. Esperámos por ele, anos. Muitos nos visitam com regularidade, e ainda assim contemplamo-lo, a este, com um misto de temor e de admiração. Aprendemos a comportar-nos diante dele, perante ele, por causa dele, antes e depois dele passar – evitar concentrações desnecessárias, comportar-se ordeiramente e ouvi-lo, escutá-lo, aplaudi-lo, porque só a força bruta da natureza poderia explicar esse turbilhão involuntário que vem de dentro, de dentro dele, homem barbudo e belo que ama os homens como seus iguais, mas que nunca encontrou um igual para o amar mais do que a si mesmo. E nós, à nossa maneira, orgulhosos mas enfezados no nosso porte, compreendemo-lo como nos compreendemos a nós mesmos, perdoando-lhe as suas ofensas assim como perdoamos (até quando?) a quem nos tem ofendido, ainda assim, amando-o profundamente mas duvidando dia-a-dia da nossa imagem nesse espelho. De manhã, esfomeados e desgrenhados, esperando que o vento acicatado pelo furacão se aninhe nos nossos cabelos e nos console. De tarde, esforçados e cansados, esperando que a chuva lave as nossas lágrimas. E de noite, exaustos e tranquilos, esperando o seu olho de idílio que dizem revelar um paraíso de cinzas. Esperamos, assim, por ele, sob a falibilidade do presente e a incomensurabilidade do futuro, amando-o como se continuássemos ainda a ser aquele cego guiado pelo cão das lágrimas.
#PP_CUBA_06 #PP_CUBA_07 #PP_CUBA_08

Minutos antes da chegada do furacão e sob aquele céu vermelho, tudo se calou. Os vizinhos que não despertaram com o vento enroscando-se no sopé das árvores, ou com as placas de metal fustigando as janelas, ou com aquela porta mal fechada que hesita entre dois espaços estreitos, despertaram depois, com o silêncio. Era um silêncio vermelho, demasiado, grande, um silêncio de medo, uma espécie de sinal de deus ali no céu – deus só pode mesmo vir do céu, porque é certo que o homem que amamos só pode vir desta terra. Tinha lido sobre essa luz vermelha que muita gente diz ter vislumbrado noutros tão destruidores momentos, como terramotos e tsunamis, noutras partes do mundo. Por isso quando espreitei pela janela e vi aquele céu assim vermelho vim cá para fora. O vento continuava a assobiar mas, na pele, não se sentia mais do que uma ligeira brisa e estava tão quente e tão húmido que parecia o amanhecer de mais um dia de Verão, ainda que não passassem das três da manhã. Era uma alvorada rubra, sem sol. Um calor condensado, fechado, sufocante. Era o inferno suportável no limite.
 
#PP_CUBA_09 #PP_CUBA_10
A vizinha da frente disse-me, benzendo-se, que parecia “que o céu queria sangrar”, que tudo não passava de “castigo de Deus” e eu perguntava-lhe “que mal teríamos feito para merecer aquele castigo”. “Ay mi chiquitica, até parece que não sabes”, e eu, incrédula perante a profunda fé de terço e Avé-Marias contados e cantados pela presidente marxista do comité de defesa da revolução do meu bairro, respondi que não sabia com um aceno negativo, braços ainda cruzados sobre o peito, aquele céu vermelho prestes a sangrar na materialização verdadeira de que o real maravilhoso nascera afinal naquele mesmo dia e não naquela mesma ilha, sessenta anos antes, com Alejo Carpentier. Este reino é deste mundo e não do outro, e ainda que haja quem diga que o Haiti é aqui, ou que o Tarrafal é aqui, como se disse antes, Macondo também pode ser aqui. E se este céu vermelho pode não passar de um sinal
de deus (ou do inferno) sangrando sobre os nossos corpos consumidos pela cinza dos dias, neste Macondo em monstruosa e perpétua mutação, o céu vermelho é apenas o que o olho humano, obcecado com os seus pecados ou, moralista, obcecado com os pecados dos outros, vivendo de chicotadas de culpa no dorso ou de consolo de divisa no bolso, não conseguiu ainda perceber: o céu vermelho é o apocalipse, fim de um princípio e não o princípio do fim. Isto quer também dizer que quando o céu em chuva se tornar, ainda que verta o sangue e as lágrimas das nossas tristezas incertas, é com a certeza de que todos os corpos neste pedaço de terra serão sal, suor e turbilhão, que saberemos que o coração ardente que bate aqui bate ainda por ____________. #PP_CUBA_11
 
 

Sentei-me, então, a escrever, certa de que talvez tu não compreendas o que neste texto se diz, iluminada por esta vela, porque, mesmo que já não haja luz, enquanto houver a página em branco há sonho.

#PP_CUBA_12
 

Maria David, Havana, 31 de março de 2012