.fim
Enxergar é um verbo molhado. Com os olhos muito abertos é díficil ver através das lágrimas de vidro. Hoje, com o clarão reflectido no cimento, pensei ter vislumbrado a presença dela, correndo para o outro lado da rua, desaparecendo na escuridão. Tinha aquele lenço de seda com flores pequeninas vermelhas e murchas – eu vi, pela frincha da porta, quando lhe puseste as mãos à volta do pescoço, no beijo da morte, o batom esborratado do lado esquerdo, a máscara a cair em pedaços de louça preta pelas faces desfeitas em barro. Finalmente, a chuva. Juro que a luz me feria os olhos, mas só hoje eu sei ver com claridade o que me cegou.
Ontem. Pus o quadro de flores na parede da sala. Vermelhas por fora, laranja por dentro, o mesmo laranja da tangerina podre varejada por mosquinhas irritantes na mesa da cozinha. Não limpo. Juro que não vou limpar. Sei que as mosquinhas atómicas se vão multiplicar e infectar a última banana que nasceu verde. Até agora, a pinta da banana não é visível a olho nu, mas os ombros, os pés, os joelhos dela são. Não deito fora. Juro que não – o cheiro há-de fazer-me acordar. Ao fim de alguns dias, tudo estará já podre, a banana verde estará preta, o quadro laranja partido, e a tangerina coberta de pó branco do bolor. Vejo as pintinhas espalharem-se lentamente pela pele da banana, vejo as dobras ganhando sombras como rugas, e uma pinta a transformar-se numa mancha de óleo.
Anteontem. A subir escadas até ao infinito desde domingo. Dezassete andares para cima, às escuras, e tremem as pernas porque haverá algures baratas do lado de lá do corrimão. Quando se desce, parece um mergulho no vazio, corre-se, mas não se chega. É aterrar num corredor com uma parede transparente e não ter uma chave. Dezassete andares para cima: camisas suadas, pingando as gotas da chuva que não cai há dias. Ar quente, humidade relativa aos pulmões de cada um. Sonhava com bolas de sabão. (ela disse que água, há sempre!). Acendi a vela madura (ela disse que, agora, a luz nunca faltava), e já não havia duas sombras na sala.
Domingo, comprei-te um quadro de flores. É difícil ver o tempo passar. (ele disse que as flores eram bonitas). Eu sei que os dezassete andares custam, eu sei o que é sonhar com escadas de centro comercial. (ela disse-me que o elevador nunca avariava). Mas cá em cima ainda há pequenas recompensas. Antes de chegares, despejei o leite no ralo, coalhado, descendo em golfadas em direcção ao solo, dezassete andares de tubo roído pelo cheiro branco da nata azeda. Antes de chegares, vi, através das janelas de vidro em retalhos rectangulares – não sei explicar, tinham uma alavanca como as portadas de madeira da casa da minha mãe – um táxi parar em frente ao prédio. Dezassete andares de olhar para baixo, longe do corrimão onde se escondem os ninhos das baratas, perto do leite derramado. Não, os olhos não ficaram molhados. Não, não era a chuva que finalmente caía. Não, não vi. Juro que não era um táxi. Era o vidro que distorcia tudo, era duplo e grosso, de um material que riscava quando se passavam as unhas, talvez fosse um plástico. Não se percebia bem, com a claridade quente batendo nas alavancas de metal e reflectindo os raios de sol, ia jurar que não vi o cabelo, o lenço, o pescoço dela. (mas ele disse que as flores eram bonitas). Enxergar é díficil com as lágrimas embutidas no vidro. Depois de subires as escadas, de beberes toda a água do púcaro com uma pedra de dezassete andares de gelo dentro e da camisa suada a anunciar a chuva que ainda está para vir, disseste que as bananas apodrecem quando se rasgam uma da outra, pelo caule.
Quinta-feira. Escolhi a tua prenda de anos. No mercado, comprei bananas, mas não havia malmequeres. Estavam murchos, queimados nas pontas, as folhas caíam, pêndulos. Por isso, trouxe geribérias. Vermelhas. Espero que durem até domingo.
M.D.
Liverpool, 8 de Outubro, 2007
Enxergar é um verbo molhado. Com os olhos muito abertos é díficil ver através das lágrimas de vidro. Hoje, com o clarão reflectido no cimento, pensei ter vislumbrado a presença dela, correndo para o outro lado da rua, desaparecendo na escuridão. Tinha aquele lenço de seda com flores pequeninas vermelhas e murchas – eu vi, pela frincha da porta, quando lhe puseste as mãos à volta do pescoço, no beijo da morte, o batom esborratado do lado esquerdo, a máscara a cair em pedaços de louça preta pelas faces desfeitas em barro. Finalmente, a chuva. Juro que a luz me feria os olhos, mas só hoje eu sei ver com claridade o que me cegou.
Ontem. Pus o quadro de flores na parede da sala. Vermelhas por fora, laranja por dentro, o mesmo laranja da tangerina podre varejada por mosquinhas irritantes na mesa da cozinha. Não limpo. Juro que não vou limpar. Sei que as mosquinhas atómicas se vão multiplicar e infectar a última banana que nasceu verde. Até agora, a pinta da banana não é visível a olho nu, mas os ombros, os pés, os joelhos dela são. Não deito fora. Juro que não – o cheiro há-de fazer-me acordar. Ao fim de alguns dias, tudo estará já podre, a banana verde estará preta, o quadro laranja partido, e a tangerina coberta de pó branco do bolor. Vejo as pintinhas espalharem-se lentamente pela pele da banana, vejo as dobras ganhando sombras como rugas, e uma pinta a transformar-se numa mancha de óleo.
Anteontem. A subir escadas até ao infinito desde domingo. Dezassete andares para cima, às escuras, e tremem as pernas porque haverá algures baratas do lado de lá do corrimão. Quando se desce, parece um mergulho no vazio, corre-se, mas não se chega. É aterrar num corredor com uma parede transparente e não ter uma chave. Dezassete andares para cima: camisas suadas, pingando as gotas da chuva que não cai há dias. Ar quente, humidade relativa aos pulmões de cada um. Sonhava com bolas de sabão. (ela disse que água, há sempre!). Acendi a vela madura (ela disse que, agora, a luz nunca faltava), e já não havia duas sombras na sala.
Domingo, comprei-te um quadro de flores. É difícil ver o tempo passar. (ele disse que as flores eram bonitas). Eu sei que os dezassete andares custam, eu sei o que é sonhar com escadas de centro comercial. (ela disse-me que o elevador nunca avariava). Mas cá em cima ainda há pequenas recompensas. Antes de chegares, despejei o leite no ralo, coalhado, descendo em golfadas em direcção ao solo, dezassete andares de tubo roído pelo cheiro branco da nata azeda. Antes de chegares, vi, através das janelas de vidro em retalhos rectangulares – não sei explicar, tinham uma alavanca como as portadas de madeira da casa da minha mãe – um táxi parar em frente ao prédio. Dezassete andares de olhar para baixo, longe do corrimão onde se escondem os ninhos das baratas, perto do leite derramado. Não, os olhos não ficaram molhados. Não, não era a chuva que finalmente caía. Não, não vi. Juro que não era um táxi. Era o vidro que distorcia tudo, era duplo e grosso, de um material que riscava quando se passavam as unhas, talvez fosse um plástico. Não se percebia bem, com a claridade quente batendo nas alavancas de metal e reflectindo os raios de sol, ia jurar que não vi o cabelo, o lenço, o pescoço dela. (mas ele disse que as flores eram bonitas). Enxergar é díficil com as lágrimas embutidas no vidro. Depois de subires as escadas, de beberes toda a água do púcaro com uma pedra de dezassete andares de gelo dentro e da camisa suada a anunciar a chuva que ainda está para vir, disseste que as bananas apodrecem quando se rasgam uma da outra, pelo caule.
Quinta-feira. Escolhi a tua prenda de anos. No mercado, comprei bananas, mas não havia malmequeres. Estavam murchos, queimados nas pontas, as folhas caíam, pêndulos. Por isso, trouxe geribérias. Vermelhas. Espero que durem até domingo.
M.D.
Liverpool, 8 de Outubro, 2007
2 comentários:
Isto pode parecer despropositado, mas quem é o/a M.D? gosto do texto. Das imagens também, obviamente!
boa malha as duas últimas
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