domingo, março 09, 2008

# Série 4# Como nos invernizam as perdas "Para Maria Gabriela LLansol"


Receita para ressaca de domingo: quatro garrafas de vinho tinto barato. A rolha era provavelmente portuguesa, mas o vinho devia ser espanhol, porque só o vinho espanhol dá ressacas assim. Dores de cabeça horríveis e aquela acidez-a-pedir-gurosan no estômago. Ah, agora me lembro de ter lido o rótulo com sotaques diferentes, coisa normal depois da segunda garrafa. Receita para a cura: muita coca-cola e batatas fritas de pacote (no caso de não haver assado).
– Vinagre e sal, por favor, não gosto das de paprika…
– Temos também com sabor a chouriço.
– Onde já se viu batatas saberem naturalmente a chouriço?
– Também não nascem com sabor a vinagre, não...
Nunca mais, nunca mais vou beber (repete-se a reza para não ouvir o homem). O pacote passa para a nossa mão e o dinheiro para a mão do homem; da outra mão vem o jornal de domingo e a gracinha
– Má noite, não?, com um risinho idiota de quem nunca bebeu quatro garrafas rafeiras de vinho espanhol. Diria que é da língua: a conjunção de erres, esses encostados aos dentes (como as pessoas que têm massinha), e jotas, todos repetidos numa mesma palavra, fazem de nós palermas a tentar falar um idioma que não é feito para o nosso palato. Deixa lágrima no copo e acidez na boca. Tem corpo, tem volume, cheiro e qualquer coisa de fruto. Cerejas. Sente-se o carvalho, oh, sente-se logo como envelheceu, talvez ainda não estivesse maduro. Um vinho imaturo.


















Para agravar a situação, depois de ter chovido toda a semana, chegou a neve. É aí que uma ida à papelaria transforma um quarteirão num desafio insuportável: tudo está branco, gelado, hibernado sob o cobertor de neve que queimou os primeiros jacintos a querer despontar, antes do tempo, por causa do calor anormal de Janeiro. Os pés enterram-se na neve. Vou formosa e não segura, logo hoje, que não trouxe botas, a pensar que a neve ia ser apenas uma incipiente camada de gelo no chão. Da última vez, calcei as pretas, mas como a sola estava meia descolada, a neve (que é água, apesar de não parecer) molhou-me os pés. Depois, escorreguei no gelo e fiquei com nódoas negras na zona do cóccix (fui ao dicionário, nunca sei se tem dois cês ou três xis). Não foi um dia feliz.
Já praguejei contra a neve, e continuo a não entender por que tinha de nevar hoje, quando finalmente cheguei ao primeiro dia do resto (estás a ver a data? É mesmo hoje).
Foi então que ela disse
– Vais ter muitos dias cinzentos.
Não sabia que iam ser assim. Que o cinzento seria tão tão escuro. Não sabia que quando a neve se anuncia no céu, é uma espécie de clarão branco, como o olho de um furacão no golfo do México, uma noite de tempestade no deserto, ou como aquela luz que dizem ter visto antes do terramoto. Talvez o cinzento pareça mais escuro por causa do alvo da neve. Talvez não fosse assim tão cinzento, talvez essa mesma cor tivesse sido pintalgada pelas gotas do vinho tinto que entornei ontem em cima da mesa. E diria que parecem mais vermelhas por causa da brancura da toalha
– Tens a pele ebúrnea. (ele disse)
Talvez, contudo, a minha pele fosse mais clara porque a dele era escura, moreno (português como as rolhas, ou espanhol como o vinho), por vezes, mais dourada, como âmbar, outras vezes, como ébano. A minha pele fica morena quando apanha sol; ele não gostava disso, porque toda eu adquiria um tom, de facto, um tanto amarelo-Albufeira, aquela cor-de-burro-quando-foge que os turistas têm quando vêm do Algarve de férias.



































– Falta de iodo. (diz a mãe)
Nunca soube bem porquê. Uma vez que (também por contraste) a pele que vem do bronze do Algarve é mais branca do que a do rapaz de ébano (o rapaz português quando apanha sol fica ligeiramente enxofrado, mas isso passa depressa). Não sei bem se é por ser domingo, mas parece-me que, contra a cor da neve, a minha pele é quase negra, como quando passava largos Verões na praia, sob o olhar atento e protector daquele ilustre Gama. A minha pele não descascava em Setembro, porque havia creme nívea em boiões azuis, e ainda não havia os cremes revolucionários anti-flacidez, anti-celulite, anti-envelhecimento, anti-stress, anti-casca-de-laranja, anti-papeiras, anti-unhas-quebradiças, anti-pernas-cansadas, anti-pontas-espigadas, com vitaminas A C D E B12, Omega 3, Aloe Vera, Bifidus Activos e Q10, os figos não vinham da Turquia, nem as azeitonas da Grécia, no mercado, não havia lentilhas vermelhas e cuscuz, nem, na papelaria, batatas fritas com sabor a chouriço. Havia gomas coloridas (aspartame, adoçantes, corantes artificiais) e, acima de tudo, rebuçados flocos de neve, com papelinhos transparentes vermelhos, como os óculos, recomendados pelos oftalmologistas, para ver o eclipse solar em directo. Também havia os peitorais, com a imagem do Camões: mas sempre achei uma heresia, o poeta, cegueta e zarolho, a ser chupado, mais do que prometia a força humana, sempre que vinha uma tosse com expectoração, o nariz com pingo, a lágrima seca, aquela cativa que me tem cativo, e o desenho do poeta ali, jaz morto e arrefece (ao Pessoa, não se lembraram de o pôr nos caramelos), junto dos lenços cheios de ranho, por mares nunca dantes navegados. Recusei-me a chupar o Camões e acabei a comer batatas fritas com sabor a vinagre.
Agora que trinco a última migalha do pacote, talvez por contraste, esta ressaca não é tão má como as outras. Talvez porque menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras. Talvez porque o nosso cérebro não consegue registar a memória da dor. Sei que já senti este mal-estar antes, mas não sei bem se era igual. No liceu, havia um rapaz (era um armante) que fazia um ranking da dor, sempre que caía ao jogar futebol. Cada queda era pior do que anterior, dizia, talvez porque ele se atirava, de facto, para o chão (era um fiteiro), ou talvez (hipótese mais provável) porque o seu cérebro não tinha memória de como era a dor que tinha sentido ontem.










































– Tudo se perde. (eu disse)
E o pai, em lugar de Raquel lhe deu Lia. Mas eu já não sabia nada do que dizia. Não sabia como nos invernizam as perdas (como nos infernizam, como nos envernizam). Não sabia que os pés atolados na neve ficam gelados, mesmo com as galochas impermeáveis. Não sabia que chafurdamos no lodaçal e enterramos a cabeça na areia nos dias cheios de sol. Não sabia que tudo parece cinzento, até quando as azáleas estão a vibrar nos vasos e as japoneiras em flor, em pleno Inverno. Não sabia que os dias se contam pelos dedos, um de cada vez. Não sabia o que era essa coisa da ressaca de domingo, mistura de garrafas bebidas, café com pão, café com pão, café com pão, imagens que passais pela retina, versos livres de memória fácil, angústia de segunda-feira, o rosto carregado e a barba esquálida, a postura medonha e má, cheios de terra e crespos os cabelos, a boca negra, os dentes amarelos, flocos de neve filtrados por papéis vermelhos, e saudades do Camões.
– A vida tem coisas de uma tristeza desmesurada. (ele disse)
Ainda não sabia o que era o ardor.

Maria David, Liverpool 3 de Fevereiro 2008

P.S. Maria, a frase do título é tua.

3 comentários:

Paulo Pimenta disse...

apagar

fary disse...

como nos marcam estas séries. parabéns.

Paulo Pimenta disse...

vou