domingo, abril 27, 2008

# Série 5# Recordar a ausência

Há quem coma pizza primeiro pelas bordas e só depois o meio; outros comem primeiro o meio e deixam as bordas para o fim. Há quem leia Tio Patinhas, a TV Guia ou a Bola na sanita; outros, o Le Monde Diplomatique. Quando perguntei, responderam: “é um momento de grande concentração, seja a última entrevista do Ignacio Ramonet ou o novo corte de cabelo da Victoria Beckham”. Compreende-se, por isso, que haja coleccionadores, pessoas que guardam milhões de coisas em caixas, caixinhas e caixotes, mas também pessoas que se desfazem de tudo, que não gostam de quinquilharia, que nunca irão à feira da ladra, que não têm três jarras consoante o tipo e a quantidade de flores, que não têm porta-retratos da mesma pessoa em diferentes posições, que não têm certamente uma cristaleira iluminada com soldadinhos de chumbo, dedais exóticos, aviões, dentinhos de elefante em miniatura, árvores de pedrinhas preciosas da África do Sul de todos os tamanhos e cores, carrinhos e santinhos e bonequinhas de porcelana.








Crianças sonham com o que fazem os objectos quando os deixamos. Por exemplo, os soldadinhos de chumbo: o que fazem quando apagamos a luz da cristaleira? Sim, sabemos, lutam em tremendas batalhas napoleónicas. E? Os dentinhos de elefante também? Eu cá não estou a ver os dedais a falar entre si, como os humanos no balcão do café, a sonhar entrar em dedos, uns longos e elegantes, outros gordos e peludos, uns macios e bem hidratados, outros, arghh, suados e e e que cheiro é este?! Mas é vão pensar que apenas as crianças têm curiosidade ou imaginação suficientes para magicar o que os objectos seriam se não fossem objectos. Há adultos também. Talvez os coleccionadores sejam assim (isso mesmo, assim): adultos que indagam o que acontece a todas aquelas mesas e cadeiras vazias e quietas, os restos que deixamos para trás quando partimos da casa da avó, todos os anos no fim do Verão, dias mais curtos e cadernos novos, imaculados, acumulando-se em cima da mesa da sala.
Há muito tempo que queria perguntar à avó por que razão aquela cadeira de metal tinha perdido a cor. Sempre me incomodou ver a cadeira lá fora, tantos anos, fustigada pelo vento, pela chuva húmida, pelo granizo, pela neve no Inverno - e não há Inverno mais frio do que este, no Noroeste. Às vezes pergunto-me, o que diria a cadeira de ferrugem castanha (foi branca, um dia) sobre o vestido de florinhas da avó. Diria, talvez, que a avó era uma interesseira porque só se sentava nela no Verão. No Inverno, nem vê-la, cheia de humidade e de ferrugem molhada, a estragar-lhe a roupa toda – a avó praguejava quando os lençóis brancos ficavam manchados ao tocar a pontinha de ferro da cadeira.





A minha prima Cândida costumava perguntar se o banco de pele que está encostado à fachada em ruína, perto da casa da avó, preferia “ser-se deitado” por ela ou pelo pai. Não tínhamos a certeza se o verbo podia ser reflexo neste caso, mas deixámos a questão para os linguistas, porque quando Cândida decidia como se diziam as palavras, não havia V de volta. O tio Carlos tinha posto ali o banco porque após o meio-dia, o sol passava a fachada de duas portas, uma vermelha e uma castanha já esbranquiçada, e toda a tarde dava sombra sob a hera. O tio Carlos, desde criança, dizia a avó, se deitava ali aos fins-de-semana, depois de almoço, para dormir a sesta, sem que ninguém o perturbasse, senão os mosquitos. Mas o cadeirão era pequeno demais para um adulto. Por isso, era cómico (a avó dizia que ele tinha perdido o juízo) ver o tio Carlos todo encolhido, agora com a sua barriga gigantesca e o seu bigode suado, naquele cadeirão onde já mal cabia quando era adolescente. A Cândida roubou-lhe o lugar num longo dia de Julho (o maior do ano, resmungou o tio Carlos), correndo à frente dele e gritando-lhe para correr mais depressa porque ela ia chegar primeiro (vê se ganhas juízo, Carlos, e








deita-te na cama, porque ainda vais dar cabo da coluna, ouvia-se dizer). Depois disso, eu e a minha prima Cândida divertimo-nos muito no cadeirão de cabedal, porque como não cabíamos os dois em simultâneo, enquanto um descansava, o ficava a fazer guarda, não viesse algum terrorista tentar invadir o nosso espaço. A vigília era sempre pretexto para observar com atenção as paredes de granito velho, a textura, a cor, o bolor entranhado, indagando por que razão umas partes estavam mais escuras do que outras, o que há nesta pedra para além de quartzo, feldspato e mica? A Cândida preferia a sensação gelada do macio do cabedal colado ao corpo, sobretudo nas pernas, por causa do vestido, sensação que só mais tarde compreendeu ser muito semelhante à depilação.
Agora que a Cândida trabalha num edifício moderno, nunca mais voltou à casa da avó. O tio Carlos conta inchado (não sabemos se é orgulho ou se é barriga) que ela até pode vir a ser ministra, a avó diz que sim com a cabeça, mas lá dentro, é só areia, diz da Cândida, onde ela trabalha só há intrigas e vagabundos a chupar o dinheiro do governo, oh mãe, o que sabe a mãe disso, a discussão continuava por longas horas, até dar um pretexto à avó para falar do lugar onde a Cândida trabalha, eu bem vi, aquelas cadeiras rectilíneas, diz-se minimalistas, avó, quero lá saber, aquilo para mim é uma mesa com pernas, ora, é isso que uma cadeira é, a avó encolhia os ombros, revoltada pelos netos terem preferido o cabedal (a Cândida sempre saiu ao teu tio Carlos) à aquela cadeira, fiel e ferrugenta.






























No Verão, a avó sentava-se sempre naquela cadeira com o vestido de florinhas pequenas pelo joelho e lapela arredondada, e um alguidar vermelho no colo, a descascar feijão verde. Talvez, como nós, as únicas imagens que a cadeira guarda da avó estejam associadas ao feijão verde: sopa de feijão verde, salada russa com feijão verde, feijão verde com ovo, bacalhau cozido com feijão verde. Às vezes, havia feijão vermelho, mas estava triturado na sopa com o verde, para que a Cândida não percebesse – ela nunca gostou de feijão vermelho: tirava-lhes as cascas, desfazia tudo num puré acastanhado com o garfo, e dava ao cão.
A Cândida sabia que o feijão vermelho tinha uma vida própria, uma vida secreta desde que era plantado até chegar ao prato, cozido na panela de pressão, adicionado ao refogado antes de estar pronto, água a ferver, pôr o arroz, deixar cozer até ao fim, rectificar os temperos, et voilá, marco-belini-é-que-sabe! Claro que a Cândida gostava era de massa italiana, tomatada e esparguete, o manjar dos pequenos marqueses para salpicar – de sangue, de sangue! – o peito do vestido branco de renda que era da mãe. A avó passava-se com as brincadeiras da tomatada, vou fingir que te espeto uma faca no peito e vais fingir que morres, ok?, o sangue está aqui no molho da bolonhesa, também podes pôr catchap, se quiseres, não é catchap que se diz, é ketchup, és mesmo ignorante, não sou, porque se escreve ketchup e se diz catchap, nas línguas estrangeiras o que se diz e o que se escreve não é a mesma coisa, como é que sabes isso se não sabes línguas estrangeiras, deitava a língua de fora, porque deixara de ter argumentos, corríamos à volta da mesinha de centro, em frente à televisão, a Cândida a ser perseguida, a ser morta com catchap, a jorrar sangue, esmagada contra o armário das tralhas da avó. A mãe é que dizia que eram as tralhas da avó: o relógio parado, decorações de natal fora de época – permanentes, a avó retorquia –, as nossas-senhoras-de-fátima coleccionáveis (a Cândida nunca percebeu como era possível as nossas-senhoras terem sempre uma cara diferente, ora nova, ora velha, não havia uma foto oficial?, a nossa-senhora não é a princesa Diana, dizia a avó), a foto do bisavô Armindo que tinha morrido na primeira guerra mundial (isso foi há imenso tempo, já havia fotografias nessa altura?, Candidinha, há fotografias desde o século XIX, a avó era, para a Cândida, uma senhora do século XIX que vivia no século XX e tinha chegado ao século XXI, quantos meses tem um século?, não sei, faz a conta).






















E assim a Cândida morria, uma vez por semana,
em frente da panela de molho de tomate ou das travessas de rojões, antes da avó pôr o vestido em lixívia, uma vez por semana, a gretar as mãos e a desgastar lentamente o tecido e a paciência.
Mas tudo mudou com a morte da avó, poucas semanas depois de termos deixado a casa no fim de um Verão, como era costume todos os anos. Foi em meados de Outubro, perto do feriado em que se derrotaram os espanhóis (a mãe disse para fazer referência a isto, porque a Cândida agora tem um namorado espanhol e, já se sabe, de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos). Agora, sim, fazia sentido perguntar como se recorda a ausência, como se comportam os objectos quando os deixamos para trás, como comunicam, em batalhas campais ou em simples conversas de corte e costura, o clube do tupperware da cristaleira, ou saudades do humano a passar os dedos por entre os folhos dos vestidos das bonecas. Tudo seria mais fácil se os soldadinhos de chumbo subissem a bordo dos aviões, destruíssem todos os dedinhos de elefante que não fossem desenvolvidos em comércio justo (marfim fairtrade), para bem da globalização, ta-ta-ta-ta-ta, voltassem a aterrar na cristaleira e casassem com as bonecas de porcelana. Imaginava esta complexa e intricada história de amor em tempo de guerra entre os soldadinhos e as bonecas quando o carro parou em frente da casa da avó. A Circe, o Sócrates (gatos) e o Prometeu (cão) – nomes gregos inspirados na Yaka e não na Grécia

































– aguardavam solenes a nossa chegada – como pessoas, como pessoas! –, os três sentados na soleira à espera dos humanos. Se a Cândida estivesse aqui perguntaria, de certeza, como se sentiram a Circe, o Sócrates e o Prometeu com a ausência da avó. Não teria resposta, a Cândida. Mas o acanhamento do Sócrates quando tentámos chegar perto dele, a agitação do Prometeu quando o carro estacionou, o olhar vago e triste da Circe a espreitar no vazio através da janela da sala, dariam a Cândida a resposta à pergunta que ela não fez, porque a Cândida não foi à casa pela última vez. Por isso (ironia?) candidamente, a Cândida não viu as teias de aranha acumuladas nas paredes de madeira da garagem da avó como o Santo Sudário em Turim, a ausência da aranha deixando um último rasto no mundo; não viu o reflexo da luz no fundo do poço, e poderia ter visto o seu próprio, ao beber água do púcaro frio de metal; não viu os arranhões do gatos na tábua de madeira que a avó costumava usar a fazer de mesa no pátio, nos jantares longos dos dias quentes de Verão.
(devias ter vergonha, Cândida)
E também não viste as nuvens altas e espalhadas pelo céu como o catchap no teu vestido branco, aquelas nuvens que só podem vir do Atlântico e se mantêm firmes, em castelo como as claras, no azul claro de ferir os olhos do sol doentio de Outubro.
Há pessoas que comem pizza primeiro pelas bordas e só depois o meio; outros comem primeiro o meio e deixam as bordas para o fim. Por isso, há pessoas que choram lágrimas de crocodilo (como a Cândida; apesar de eu ter dito sempre corcodilo só para ela poder dizer, és mesmo ignorante) e pessoas que choram lágrimas de sal. E há aqueles que simplesmente disfarçam a lágrima na areia da praia ou nas nuvens de lágrima a anunciar chuva, pegadas a denunciar sempre a ausência, o resto, o rasto, a restante vida.

Maria David
Liverpool, 22 de Abril de 2008

2 comentários:

kitato disse...

ui! do melhor! sim senhores!

kitato

Casquinha disse...

Muito bonito...