terça-feira, novembro 23, 2010

#Série# Segunda Temporada

Andar de bicicleta é como aprender a ser trapezista. Não admira que a minha bicicleta tenha aguentado rodinhas de apoio até aos seis anos – já todas as crianças do bairro andavam sem elas, mas eu tinha medo. De cair. É verdade, milhafre ferido na asa.
Tive sempre medo, o que não faz de mim uma acrobata (talvez me devesse chamar Temia). Mas aprendi que de bicicleta podia sonhar atingir a velocidade da luz, uma claridade brilhante cheia de pontos negros (medo); podia sentir o vento nos cabelos (olha, olha, sem mãos!) e ser equilibrista por minutos mas também sentir a chuva e apanhar pneumonia (medo) – queria ter escrito apanhar a chuva e sentir pneumonia mas tive medo que soasse mal, sobretudo em cima da bicicleta, o vento a levar as palavras para trás, ninguém ia conseguir perceber, com a velocidade com que as palavras voavam para trás e eu a pedalar para a frente. Também podia chegar mais depressa ao destino sem precisar de falar durante todo o caminho – é cansativo ter de falar todo o tempo, mesmo quando se vai a subir a ladeira e o esforço do pedalar verifica-se com a ligeira subida dos quadris a puxar a bicicleta para cima, como os rapazes na subida à Serra. Todos os anos ia ver a Volta passar em Santiago, mas tinha medo que um ciclista se despistasse e levasse todo o pelotão (eu dizia Plutão, porque achava que aquilo era mesmo de outro planeta) atrás para a frente, para o chão.
Por isso, comprei um capacete. E um colete reflector como os rapazes das obras (referência propositada ao género acompanhada de assobio à rapariga que passa justamente de bicicleta aqui em frente). Ainda assim, tenho medo dos carros, e dos autocarros, da queda e da velocidade, de cotovelos esfolados, escoriações e braços partidos, tenho medo de histórias de pessoas que caíram da bicicleta (um cão atravessou-se-me à frente e) mas admiro as que não sabem pedalar (ou terei medo?).
Essa era a primeira temporada, infância, o mundo já a cores e a RTP só. A segunda temporada é monocromática, apesar da SIC. Temo.
1
É azul: Portugal intimidado por esse manto de nuvens vogando como pássaros negros sobre o símbolo da cruz de Cristo.
2
É verde: Portugal reflectido nessa bola de espelhos de esperança (o futuro tem luzes dentro).
#PP_BAR_ABERTO_01
É vermelho: a pele de Portugal eriça-se com o leve toque de uma pluma. Mas é breve esse excitar, é apenas instinto, ameaça de rebuliço, fogo mergulhado em banho quente (maria).
4
É preto e é branco: rapidamente o monocromatismo gera cinza nos olhos fechados e a tristeza sobre o ombro aconchegado espalha-se como medo generalizado.
5
A segunda temporada é longe (daqui). Também a temo. Olha só: Portugal é a esperança de frente para o mar. Tudo isto é belo, olha o sol!, que quente na pele, a areia é tão branca que quase nos cega, não há nuvens, o céu é de um azul infinito, o mar devora arribas como um coração em tumulto apaixonado, os golfinhos saltitam nas manhãs do Sado, e os robalos andam à nossa beira como rafeiros companheiros a vir cheirar, um país de vinhas e oliveiras, sobreiros descascados às camadas, pinhais verdes, amendoeiras em flor, laranjeiras carregadinhas, milheirais fartos e arrozais
alagados, vacas leiteiras em pastos verdes, barrosãs de negros socos nos olhos, porcos pretos pastando na planície, abacaxis pequenos e doces, ameixas pretas, ameixas brancas, ameixas vermelhas, ameixas pequenas, caranguejolas, suculentos dióspiros e romãs vermelhas rubras, maçãs bravo e pêras rocha, melões verdes, melões brancos, meloas, melancias grandes, pêssegos macios, pêssegos rosa, pêssegos careca e nectarinas, alperces nêsperas e magnórios, garbanzos e grão de bico, xíxaros e feijão frade, uma língua mais rica do que qualquer outra e ainda assim, o único espaço do mundo onde não consigo escutar o som da minha própria voz. Sobretudo quando ela me sussurra, diante desse mar imenso de desespero e esperança, diante desse sol que queima e dessa (às vezes) chuva inclinada que vem de baixo como uma revolução.
6
Temo a voz que diz, Não voltes, não há emprego, este país não anda para a frente, somos explorados, sugados, chupados, precários, inexistentes, intermitentes, não temos voz, ninguém nos ouve, já ninguém grita, tenho um curso, um mestrado, uma pós-graduação, um doutoramento, falo cinco línguas, trabalho num call-centre, numa empresa de recrutamento, num café, numa loja, sou caixa de supermercado, sou bolseiro, desempregado, vivo de estágios há dez anos, voltar, nem penses! somos a geração setecentos, os nossos sonhos foram descontados, os nossos descontos foram roubados, não pertencemos a nenhuma empresa, a recibos verdes somos independentes, por nossa conta não conhecemos outrem, existimos para nós mesmos no lamaçal da fuligem, vou partir, que queres?, nada mais há aqui para fazer, terra da fraternidade, sou arquitecto, jornalista, tirei história, português, inglês, francês, direito, economia, gestão, sim, sou doutor, mestre, engenheiro, professora, queremos casa, trabalho, pão, saúde, educação, existimos a prazo, sem data, sem plano nem sonho, estamos para aqui deixados, à beira mar plantados, agora sim, medicados, que queres? Este país não é para jovens. A segunda temporada é no Brasil, é em Angola, é na China, grandes planícies verdes, novas oportunidades, bicicletas de esperança. Bêbados e equilibristas.
7
m.d., nottingham, 18 de novembro 2010
#PP_POLONIA_21
Maria David

3 comentários:

Artur Lourenço disse...

cheguei aqui via Adriano Miranda e o seu belissimo 400 asas.E que bom foi vir aqui ter.Fabuloso blogue, fabulosas fotografias e não menos fabulosas palavras.
Obrigado e uma abraço.
AL

teresa sá disse...

Mto bom!
xx

Pedro Cruz disse...

O trapezista é um ginasta em equilíbrio constante e quando pensamos que vai cair, dá mais um salto mortal e a dança continua. Eu não! Não sou trapezista e tive de fugir desse circo…
Parabéns pelo blog e em especial por este post.