Sobretudo quando ela disse
Nao facas isso.
Assim, sem acentuação, parece que as palavras se suspendem desamparadas da mulher, enforcadas em cordas presas aos galhos secos do sobreiro (quase) doente. Não havia ponta de humidade, não havia uma folha verde, um laivo de seiva – este ano foi de chuva escassa. Assim, dependuradas de um sobreiro, as palavras, que o galho quase a quebrar aguenta, parecem frágeis seres. Ironicamente, é o ser que falta no som dessas facas espetadas no coração das palavras.
Porto, 29 Novembro 2007
Não faço o quê?
Aqui havia pergunta, havia acentos. Havia a possibilidade de olhos esbugalhados, rugas na testa vincadas sem permanente, a boca ligeiramente entreaberta, de surpresa e estupefacção. Havia ponto de interrogação no final, e o ê em cima da letra, que contrai o nariz, abre as narinas, levanta o lábio superior. Havia cedilhas (e til), não era uma nau afundando-se no meio da frase. Isso não significou nada para a mulher. Ela não respondeu, remeteu ao silêncio as suas palavras truncadas de acentos, as suas ausências de cedilhas (e os novos códigos que elas implicam), esperando por uma resposta, qualquer, a resposta que (talvez) a fotografia possa dar às perguntas que a vida faz.
Ela chegou, muito tempo depois, e era a preto e branco – como todas as respostas. Como a da mulher: nenhuma. Não há fumo sem fogo, não há sibila sem som, mesmo que não haja çibilas (há quem diga sim). Ela disse nao facas porque ele fazia. Sempre. Se houvesse cedilhas na boca da mulher, haveria sobretudo repetição. Ele estava farta, cansada, da mesma provocação, a incessante introdução de novas variantes de um mesmo problema decifrado já pela ciência. Apetecia dizer facas, mesmo que faças fosse a solução. Ele continuava a fazer, como se não fosse.
(esta parte é fic-são)
Aqui havia pergunta, havia acentos. Havia a possibilidade de olhos esbugalhados, rugas na testa vincadas sem permanente, a boca ligeiramente entreaberta, de surpresa e estupefacção. Havia ponto de interrogação no final, e o ê em cima da letra, que contrai o nariz, abre as narinas, levanta o lábio superior. Havia cedilhas (e til), não era uma nau afundando-se no meio da frase. Isso não significou nada para a mulher. Ela não respondeu, remeteu ao silêncio as suas palavras truncadas de acentos, as suas ausências de cedilhas (e os novos códigos que elas implicam), esperando por uma resposta, qualquer, a resposta que (talvez) a fotografia possa dar às perguntas que a vida faz.
Ela chegou, muito tempo depois, e era a preto e branco – como todas as respostas. Como a da mulher: nenhuma. Não há fumo sem fogo, não há sibila sem som, mesmo que não haja çibilas (há quem diga sim). Ela disse nao facas porque ele fazia. Sempre. Se houvesse cedilhas na boca da mulher, haveria sobretudo repetição. Ele estava farta, cansada, da mesma provocação, a incessante introdução de novas variantes de um mesmo problema decifrado já pela ciência. Apetecia dizer facas, mesmo que faças fosse a solução. Ele continuava a fazer, como se não fosse.
(esta parte é fic-são)
Na leitura desta mesma frase, aqui, aquele que lê estará possivelmente possesso: não há razões para isso. Aquele que lê tem uma couraça que lhe permite saltar as cedilhas e os acentos, porque já sabe que lá estão. Na ausência. Por isso, aquele que lê, não leu facas, não leu o sangue dissipado sobre o indecente leito, não leu as naifas a sair o cabedal do homem que matou (o cavalo de) Liberty Valance, não leu os punhais de madrepérola no armário ao lado da carabina de caça à perdiz, não leu a lâmina da barba espessa de Orson Welles, nem a do bigode incipiente de Dostoiévski, não leu um grito de revolta com o som das cacacatanas a sair da boca, não leu os cogumelos estraçalhados na tábua de uma cozinha na China, nem o fio cortante a entrar lentamente na superfície tenra do bife ontem ao jantar, nem o raspador da pele da batata e o seu ruído fininho como o chiar da bicicleta lá fora.
Aquele que lê sabe que há aqui alguma razão, mesmo que aqui não haja cedilhas. Aquele que lê partilha os segredos dessa sabedoria vã que é saber ler sem assentos, na interminável fila das finanças, do expresso das sete, da segurança social. De pé, mesmo com kataratas nos olhos. Saber ler de trás para a frente no retrovisor a aicnâlubma, mesmo não conseguindo escutar o seu som. Aquele que lê deixa passar, porque sabe qual a palavra que vai encontrar quando o veículo prioritário se encontrar à sua frente. E vai sorrir, no reconhecimento idiota da sua própria capacidade de ler td o k lhe puserem à frente, com conotações adjacentes.
Por isso, quando ele disse “o quê?” (aquele que não lê), já se sabia a resposta. Não, não havia ponto de exclamação, de interrogação, não havia reticências, não havia travessão, a frase, a vida, a respiração do corpo quente não continuava na linha seguinte, na rua atrás daquela janela, na próxima estação. Podia nem ter ponto final, podia não ter til e isso podia estar escrito com cedilha (mas não está). São dois ss sibilantes, ciciam, ao sentir a suave ponta língua contra o interior dos dentes, ciosos de cedilhas, foi por isso que eu disse
Maria David, Liverpool, 8 de Novembro 2007
Maria David, Liverpool, 8 de Novembro 2007
4 comentários:
Boa!
(eu, que sou amigo das cedilhas, gramei.)
Rui Poças
Fotos magníficas. Com o tom certo da palavra no corpo!
Simplesmente fantastico (sem assento):-)
grande abra�o Miguel
Grande, grande.
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