“Está gente”, gritam mulheres, cuecas ainda nos joelhos, quando alguém bate à porta de tabique da casa de banho. Os homens não têm esses pudores, talvez porque têm poder e podem mostrar tudo; as mulheres, não, escondem-se atrás da camisola, soutien apertado à frente, agora rodado para trás, levanta uma manga, levanta a outra, ginástica pulmonar. É melhor não ir por aí. Signo é o vermelho que nos diz proibido, não podemos passar agora, talvez mais tarde,
volte quando as cuecas estiverem no seu sítio (não no seu, mas no sítio delas). Não se esqueça de voltar. As suas cuecas vão descer também, não é preciso mais, isso, não respire, vá lá, não respire, pronto, já pode respirar. É o vermelho da sala da micro que nos faz encher os pulmões de ar, o homem do BCG diz para não respirarmos, sustemos a respiração, só mais um bocadinho. Ele consegue ver as nossas costelas, o espaço interior preenchido pelos nossos pulmões cheios de vermelho, traduzidos para azul no negativo da radiografia. Após a espera interminável, ainda não conseguimos recomeçar a respirar; até que a senhora da secretaria (os estigmas de género perpetuam-se aqui: o homem da micro e a senhora da secretaria, o homem das finanças e a senhora da tesouraria, o homem do gás e a senhora do balcão da bomba de gasolina - as senhoras estão sempre sentadas a gritar “está gente”, mas ninguém parece ouvir) diz
volte sempre. O Estado pedia às escolas para pedirem aos alunos para tirar a micro. Era o acontecimento do Verão. Antes de haver botijas de gás leves e cor-de-laranja, e o homem do gás se ter transformado numa rapariga que diz proibido com todas as letras. A ginástica pulmonar que ela tem de fazer para levantar a botija diz-me que ela, às vezes, não respira. Mas apesar de ela andar a pé, de saltos altos, de botija às costas, longas pernas a desfilar até a botija rebentar de proibido, também me parece que ela não pode gritar “está gente”, porque foi paga só para sorrir. A boca da rapariga está OcupadA com um sorriso para a botija, e mesmo que só consigamos ler o O e o A, é quando não respiramos para sorrir para a câmara que sabemos que o que estamos a fazer é proibido.
Como espreitar pelo buraco da fechadura.
Agora sim, não respire. Vai sentir uma ligeira picada. Viu? Já está! Ora veja aqui, diz o médico, apontando para o ecrã. E apesar do incómodo da ausência de roupa interior, do frio do gel, e do papel azul, preso com alfinetes, nos cobrir o que resta do corpo; apesar de quase não conseguirmos respirar por causa da picada; apesar de estarmos assim, expostos, quase esventrados pelo olho escrutinador do buraco da fechadura, conseguimos ver, a piscar como o REC da câmara de filmar, no ecrã do computador, o nosso espaço interior vazio (a rapariga da botija também faz anúncios a águas enriquecidas com chá verde e diria agora, com voz grave: “não é vazio, porque setenta e cinco por cento do nosso corpo é feito de água”). É feita de água a vontade de espreitar. É quase tão líquida como mergulhar e querer abrir os olhos para ver. E respirar. Debaixo, dentro, por entre as partículas de água. Como por entre o pixel molecular da tua foto. Atrás da tela só se vislumbra a sombra da mão que diz que há qualquer coisa proibida. Não era uma estrela de cinema, senão a mão exibiria um gesto feio ao fotógrafo, e, neste caso, a mão tem cinco dedos e todos estão juntos, como uma tábua de engomar. A mão coloca-se em concha sobre o corpo (como sobre água) e a outra mão por cima, com dois dedos esticados (o indicador e o maior-de-todos). Vamos ver o que acontece. Pum-pum, pum-pum, pum-pum, os dois dedos embatendo com força no corpo criam o eco do vácuo que se assemelha à batida do coração. Estás a ouvir? Não tens nada
Eu já sabia: lá dentro está tudo ocupado, mas está vazio, não é assim? As minhas sobrancelhas cínicas dizem que auscultar é com auscultador, ao que o médico responde, com estetoscópio, mas eu ausculto com as mãos em concha sobre o corpo, pum-pum, pum-pum, pum-pum, ora traz-me aí o martelo para eu te bater nos joelhos a ver se saltam. Agora vai para ali para trás daquela tela, tens de ficar de pé, enquanto eu visto este fato. De astronauta. Muito parecido com a capa que o pai usava para cobrir o Renault 12. Sim, o médico veste uma bata parecida com a capa de um carro, só lhe falta o capacete para parecer Armstrong, o ciclista (o astronauta não é Lance), quando se cruzou com o Batman na fila para a micro no BCG. Era uma máquina radioactiva, dizia, e ele conseguia ver a parte de dentro do corpo. Não via água, mas era capaz de ver as bolhinhas de gás (fanta) a subir e descer como um candeeiro de lava, e averiguar se eu tinha as peças todas do motor do carro cá dentro (a mãe dizia para eu não roer as unhas, porque o médico via tudo com aquela capa de efeitos especiais). Exceptuando Kiev, foi a vez em que estive mais exposta a radiações (a rapariga da botija não pode aparecer agora a dizer “porque um corpo humano adulto pode estar exposto no máximo a 5000 milirem de radiação por ano”, porque ela só sabe de gás butano).
Na porta da sala onde está a ogiva nuclear também lá está o O e o O, ou antes o danger com aquela ventoinha amarela a acompanhar, e a luz vermelha que se estende como a mão aberta qual stop do sinaleiro. Apesar de ser o vermelho a dizer proibido, é a luva branca do polícia a gritar pára, tal como é o branco do flash da micro a dizer já pode respirar. Há sempre um momento branco, mesmo quando “está gente” do lado de cá da fechadura, mesmo quando temos de suster a respiração para ouvir melhor ou para nos podermos elevar em bicos de pés.
A vantagem de se ser pequeno é ter de subir às cadeiras para chegar ao cimo do armário das bolachas (proibido), mas é sempre uma chatice ter de espreitar por cima dos ombros do rapaz da frente no cinema ou da rapariga da botija (ela é alta), para ler as legendas de um filme russo. Melhor que espreitar é entrever, que é ver-entre, pelas frinchas, mas também antever, prever, descortinar. Pela fechadura, a rapariga da botija vê o sonho do homem do gás a descarregar carrinhas de caixa aberta, mesmo quando veste o fato radioactivo de saltos altos. É um fato com c. Pela fechadura, o rapaz alto do cinema vê a casa de banho das raparigas, e apesar de já não ser adolescente, ainda tem a curiosidade para descortinar o véu que separa o postigo dos rapazes do das raparigas. Foi assim que, pela fechadura, ele viu as cuecas vermelhas da senhora do BCG, quando ainda andavam no liceu. Pela fechadura, tu viste a luz aparecer debaixo da cama, como se o vermelho do NO AR da rádio, no dia anterior, não te tivesse impedido de gritar “não respire”. Pela fechadura, eu vi a luz vermelha à porta do estúdio de fotografia. Cá fora, por cima de mim, a luz branca disse-me para eu não passar além da frincha, porque queimarei o negativo. Lá dentro, o papel mergulha nos líquidos proibidos, corrosivos, de caveirinha, danger, danger, não entrar, porque não trouxe o fato dos efeitos especiais. Cá fora, nas pontas dos pés, caminho suavemente para o soalho não ranger. Lá dentro, vermelho-sangue, as pinças rangem segurando a imagem do meu cérebro OcupadO com as minhas memórias do fato radioactivo do doutor David. Talvez por isso também eu me chame David, a astronauta.
Maria David, Santo André, 10 de Julho de 2008
Na porta da sala onde está a ogiva nuclear também lá está o O e o O, ou antes o danger com aquela ventoinha amarela a acompanhar, e a luz vermelha que se estende como a mão aberta qual stop do sinaleiro. Apesar de ser o vermelho a dizer proibido, é a luva branca do polícia a gritar pára, tal como é o branco do flash da micro a dizer já pode respirar. Há sempre um momento branco, mesmo quando “está gente” do lado de cá da fechadura, mesmo quando temos de suster a respiração para ouvir melhor ou para nos podermos elevar em bicos de pés.
A vantagem de se ser pequeno é ter de subir às cadeiras para chegar ao cimo do armário das bolachas (proibido), mas é sempre uma chatice ter de espreitar por cima dos ombros do rapaz da frente no cinema ou da rapariga da botija (ela é alta), para ler as legendas de um filme russo. Melhor que espreitar é entrever, que é ver-entre, pelas frinchas, mas também antever, prever, descortinar. Pela fechadura, a rapariga da botija vê o sonho do homem do gás a descarregar carrinhas de caixa aberta, mesmo quando veste o fato radioactivo de saltos altos. É um fato com c. Pela fechadura, o rapaz alto do cinema vê a casa de banho das raparigas, e apesar de já não ser adolescente, ainda tem a curiosidade para descortinar o véu que separa o postigo dos rapazes do das raparigas. Foi assim que, pela fechadura, ele viu as cuecas vermelhas da senhora do BCG, quando ainda andavam no liceu. Pela fechadura, tu viste a luz aparecer debaixo da cama, como se o vermelho do NO AR da rádio, no dia anterior, não te tivesse impedido de gritar “não respire”. Pela fechadura, eu vi a luz vermelha à porta do estúdio de fotografia. Cá fora, por cima de mim, a luz branca disse-me para eu não passar além da frincha, porque queimarei o negativo. Lá dentro, o papel mergulha nos líquidos proibidos, corrosivos, de caveirinha, danger, danger, não entrar, porque não trouxe o fato dos efeitos especiais. Cá fora, nas pontas dos pés, caminho suavemente para o soalho não ranger. Lá dentro, vermelho-sangue, as pinças rangem segurando a imagem do meu cérebro OcupadO com as minhas memórias do fato radioactivo do doutor David. Talvez por isso também eu me chame David, a astronauta.
Maria David, Santo André, 10 de Julho de 2008
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